Além da pandemia: Determinantes políticos e reconfiguração da Política – por Sonia Fleury

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Conjuntura Política

Além da pandemia: Determinantes políticos e reconfiguração da Política – por Sonia Fleury


Mulher de cabelos grisalhos, óculos de aro preto e blusa vermelha sorri olhando para o alto

AUTORIA
Sonia Fleury

PUBLICADO agosto 14, 2023
ATUALIZADO 27 fevereiro 2025

A pandemia da Covid-19 se instalou em um mundo assolado por transformações globais que caracterizam uma conjuntura crítica, na qual fenômenos macropolíticos e econômicos tais como o crescente aumento das desigualdades e o esvaziamento da capacidade de representação das instituições políticas, tanto funcionaram como antecedentes como foram aprofundados pela crise sanitária. São evidências a falta de soberania sanitária e a dependência de equipamentos e insumos por parte dos países menos desenvolvidos, bem como a incapacidade de governança dos organismos internacionais no provimento de uma distribuição mais equitativa das vacinas e na condução política das medidas não farmacológicas.

Ainda que o impacto da pandemia não tenha sido totalmente mapeado, relatório da ONU/FAO[1] de 2021 aponta um aumento expressivo da insegurança alimentar no mundo, cerca de 20%, com 735 milhões de pessoas subalimentadas. Fatores como conflitos, mudanças climáticas e crises econômicas, que provocam a insegurança alimentar, foram amplificados pela pandemia, prejudicando o acesso aos alimentos. No Brasil o relatório da ONU aponta que 21 milhões estão passando fome, enquanto dados da Rede Penssan[2], com outra metodologia, chega à cifra de 33 milhões, devolvendo o país ao Mapa da Fome[3], do qual havia saído desde o início dos anos 1990. Por outro lado, a concentração da riqueza, mesmo durante a pandemia, foi avassaladora. Segundo a Oxfam[4], dois terços da riqueza acumulada no mundo são apropriados por 1% da população, assinalando que, pela primeira vez em trinta anos, a riqueza extrema e a pobreza extrema cresceram simultaneamente.

A resposta à pergunta de como a classe dominante opera para preservar tal sistema injusto, a economista Clara Mattei[5] observa que isso se dá ao transformar a austeridade em ferramenta técnica, despolitizando a economia. As políticas de austeridade não geraram crescimento, nem ajudaram a resolver a questão da dívida, no entanto, seguem sendo preconizadas e aplicadas. Essa persistência decorre da sua funcionalidade ao sistema capitalista, ao desempoderar a população trabalhadora, acabando com a noção de classe e conflito social. Assim, a maioria das pessoas que estão precarizadas e dependentes do mercado não vê outra saída que não seja se entregar ao mercado.  A mercantilização de todos os aspectos da vida nos impõe uma servidão econômica que só poderá ser rompida com a recuperação do poder de organização e construção de formas comunitárias de produção e distribuição, nos conclama a economista. Em outras palavras, a eficácia da austeridade não é atingida pela sua eficácia como instrumento do desenvolvimento econômico, mas sim por criar a servidão econômica para a maior parte da população, eliminando as lutas políticas.

 As políticas de austeridade não geraram crescimento, nem ajudaram a resolver a questão da dívida, no entanto, seguem sendo preconizadas e aplicadas

Tal imposição tem um custo insuportável para a população, o que resulta em um movimento que Safatle [6] identifica, desde a primavera árabe no mundo e de das manifestações de Julho de 2013 no Brasil, com a noção de insurreição, ou sequência insurrecional, que articula o Norte ao Sul, em manifestações de descontentamento com a dinâmica de concentração provocada pelo neoliberalismo. Trata-se de um movimento paradoxal, no qual, por um lado, ocorre uma desidentificação da população com as macroestruturas políticas, enquanto, por outro, ocorre uma intensa reconfiguração da micropolítica, a partir das lutas territoriais e identitárias. Essas insurreições pontuais, no entanto, têm sido incorporadas aos regimes e lideranças populistas autoritárias, com base no sentimento de negação da política. Observa-se, um fenômeno recente pelo qual a direita se torna insurrecional, apropriando-se da gramática política das esquerdas, enquanto estas se encontram acuadas e sem capacidade de direção política.

No entanto, o poder destituinte identificado por Safatle nas manifestações atuais, que vão além de demandas específicas, é, a nosso ver, incapaz de transformar-se em poder instituinte e, muito menos, em constituinte e instituído (Fleury, 2009)[7]. Se na trajetória da Reforma Sanitária Brasileira identificávamos os dilemas entre o instituinte e o instituído na configuração da correlação de forças, qual o alcance de um poder destituinte para introduzir e consolidar transformações políticas?

Se na trajetória da Reforma Sanitária Brasileira identificávamos os dilemas entre o instituinte e o instituído na configuração da correlação de forças, qual o alcance de um poder destituinte para introduzir e consolidar transformações políticas?

A 17ª Conferência Nacional de Saúde [realizada em julho de 2023] foi uma mostra importante da pujança da dinâmica da micropolítica que, com as lutas identitárias, cobra a democratização da democracia, exigindo que os direitos universais sejam acessíveis aos grupos que são estruturalmente marginalizados. Por um lado, representa um encontro inusitado, até o momento, entre um direito social, o direito universal à saúde, com os direitos humanos, na medida em que as reivindicações atuais são que o exercício do direito social não seja discriminatório e excludente. Atuam, nesse caso como poder instituinte, aliado à abertura do governo para transformar a arquitetura da participação social, anteriormente instituída, dando espaço para as forças sociais e lutas emergentes.

No entanto, persiste a preocupação devida à incapacidade de se articularem as lutas fragmentadas em um projeto comum, centrado no combate à acumulação capitalista predatória da natureza e da exploração da classe trabalhadora. As práticas e agências desmercantilizadoras, que produzem espaços, cuidados e identidades comuns, necessitam articular a dinâmica da micropolítica à busca das transformações macropolíticas, sob pena de terminar por reificar a subordinação econômica ao impossibilitar a constituição de um sujeito coletivo. Sujeito este, portador de um projeto de construção da política e da economia como parte do comum, que não se subordina à lógica mercantil da acumulação capitalista.

A produção de conhecimentos, de novas tecnologias sociais, de gestão territorial, difusão de informações, mobilização de recursos e sua distribuição, produção de dados epidemiológicos, entre outras iniciativas que foram construídas e disseminadas entre as favelas, mostraram que ali onde há exclusão, há resistência e constituição de poder

Mesmo a potência apresentada no enfrentamento da pandemia da Covid-19 em favelas e periferias no Brasil, nas quais uma cidadania insurgente teve capacidade de organizar-se e produzir política pública onde o Estado falhou, tem sido objeto de disputa. A produção de conhecimentos, de novas tecnologias sociais, de gestão territorial, difusão de informações, mobilização de recursos e sua distribuição, produção de dados epidemiológicos, entre outras iniciativas que foram construídas e disseminadas entre as favelas, mostraram que ali onde há exclusão, há resistência e constituição de poder (Fleury e Menezes, 2020)[8]. No entanto, a incapacidade e/ou lentidão das políticas públicas em trazer para a arena pública o poder instituinte que ali ficou manifesto, tem sido suplantada pela velocidade com a qual o mercado busca se apropriar dessas iniciativas como parte da agenda do empreendedorismo individualista, competitivo e mercantilizável. 

* Doutora em Ciência Política, pesquisadora sênior do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz).

 

 

 

 

 

[1] ONU/FAO – O Estado de Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo – Sofi

[3] Inclusão no Mapa da Fome se dá quando mais de 2,5% da população enfrentam falta crônica de alimentos.

[7] Fleury, S. Reforma Sanitária Brasileira: Dilemas entre o instituinte e o instituído. Ciência e Saúde Coletiva 14 (3) jun 2009 https://www.scielo.br/j/csc/a/GbXrGPf6Mmpvdc3njYY3bNK#

 

[8] Fleury e Menezes. Pandemia nas favelas: entre carências e potências. Saúde em Debate, v 44 n. especial4, p. 267-280. Dezembro 2020 https://www.scielo.br/j/sdeb/a/xSgrb6jrq3tLnGszjZ4QcWt/?format=pdf&lang=pt

 

 

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